segunda-feira, 18 de maio de 2009

Um juiz das arábias

Durante um seminário sobre violência doméstica realizado na Arábia Saudita, o magistrado local Hamad Al-Razine afirmou que considera legítimo caso uma mulher seja estapeada pelo marido por "gastar demais" - e ainda fez questão de ilustrar essa refletida e tradicionalista posição com caso hipotético: se certa esposa pretende embelezar-se um tanto e gasta com abaya(veste muçulmana típica, uma das poucas alternativas de vestuário permitidas às mulheres do reino dos Saud) o equivalente a 240 dólares e seu estimado cônjugue "bate no seu rosto como uma reação à sua atitude, ela merece aquela punição". A fala provocou revolta entre as mulheres presentes ao encontro, e uma (sim, do gênero feminino) porta-voz do Centro Nacional Saudita para Direitos Humanos achou pertinente lembrar que "Não é aceitável, é mesmo proibido no Islã bater em uma mulher na sua face ... Não importa o que a mulher faça, o homem não tem direito algum de bater na face de sua mulher sob qualquer circunstância." - com a reiterada expressão "na sua face" deixando em aberto que o sagrado Islã wahabita talvez considere, quem sabe, a possibilidade de uma mulher perdulária receber tapinha não consentido em parte menos visível - qualquer uma, dadas as abayas, hijabs e que tais - da sua anatomia.

Ridículo tragicômico à parte, é importante notarmos algo mais profundo por trás da declaração desastrada: no exemplo do juiz disciplinador, a mulher recebe dinheiro do marido e é punida por gastá-lo impropriamente, quer dizer, gastá-lo excessivamente consigo mesma, em indumentária, alimentando sua vaidade - em fala que sugere bastante claramente que essa esposa hipotética não tem fonte de renda própria, dependendo do suado dinheiro do esposo e portanto absolutamente passível de punição caso não o use como deveria. Levantando essa suposição bastante concreta, não pretendo sugerir aqui que todo relacionamento baseado em dependência do gênero é necessariamente estúpido e fisicamente abusivo - pelo contrário, estou certo de que essas conclusões totalistas nunca couberam e jamais caberão em relacionamentos, sendo absolutamente possível a felicidade e uma convivência respeitosa e sadia em situações nas quais, por varidos motivos, um dos integrantes do casal se dedique exclusivamente a atividades não remuneradas. Apesar disso, me parece inevitável concluir que, se a propriedade privada é elemento fundamental - e é - para a liberdade, inclusive daqueles que não a possuem, também a possibilidade real de independência financeira feminina abre (aliada a leis decentes sobre divórcios e pensões, mais ainda) uma larga via de escape para qualquer mulher que pretenda, numa sociedade dada, escapar aos Al-Razines de todos os cantos - a esposa do exemplo talvez suportasse o tapa porque, afinal, precisaria de 240 dólares no mês seguinte novamente.