quinta-feira, 4 de junho de 2009

Ninguém entende, ninguém explica

Em qualquer democracia minimamente digna do nome, o Presidente da República(ou o primeiro-ministro) é sempre alvo privilegiado dos mais diversos tipos de humor. Com maiores ou menores graça, sensibilidade e audácia provocativa, humoristas vários se debruçam sobre o chefe do Executivo federal e satirizam trejeitos, maneirismos verbais, tropeções retóricos(ou não), gafes diplomáticas e tudo mais que possa ser matéria de piada, produzindo uma coleção de visões em torno de um mesmo personagem que vai do chiste episódico e superficial ao comentário político mais constante, explícito e pretensioso - e tudo isso em diferentes suportes e meios de comunicação, atingindo de variadas formas boa parte da sociedade nacional e, eventualmente, internacional. Com o Presidente Lula(já há piadas prontas aqui, aliás) não foi exceção, felizmente: vítima habitual dos próprios arroubos discursivos e de singular arrogância que no mais das vezes mal e mal se esconde por trás de uma sabedoria pretensamente inerente ao coletivo dos humildes, o ex-metalúrgico e militante profissional que ora nos preside já é objeto de todo um anedotário específico, melhor conhecido quanto mais o indivíduo lê ou ouve as pérolas que Sua Excelência profere. E é a esse anedotário que somamos, sob a rubrica tragicômica, a beleza que vem abaixo:

"Indagado se a decisão fortalece a OEA, o presidente afirmou que mais do que fortalecer a entidade, a revogação da suspensão ao país caribenho foi um ato em que 'prevaleceu o bom senso', porque 'ninguém mais conseguia explicar, ninguém mais conseguia entender'.De acordo com o presidente, o período em que Cuba foi 'o patinho feio' acabou, e isso 'foi bom para o mundo'".

Isso é o Presidente Lula, falando dessa feita sobre o fim da suspensão que impedia a ditadura comunista cubana de ingressar na OEA. Para nosso digníssimo molusco-em-chefe, ninguém entende(olha a arrogância aí: ninguém, absolutamente ninguém entende o que ele não entende, justifica o que ele considera injustificável), ninguém consegue explicar porque Cuba permanecia excluída da OEA. Na fala do presidente, a situação parece beirar o surreal: a exclusão da Ilha dos(updated) Drs.Castro não teria explicação alguma, seria - ainda que não explicitado - mera birra estadounidense, mais uma (dentre incontáveis birras!) desse país imperialista e malvado que, veja só, forçaria a ausência de um país irmão em fórum de deliberação política tão fundamental para os povos de nuestra America.

Mas faltou combinar com o acaso, esse reacionário: menos de 24 após a declaração do Ungido de Caetés, o governo cubano prendeu em espetacular operação marítima um grupo de proletários desesperados que tentavam escapar das revolucionárias conquistas da república popular do povo socialista, possivelmente instigados pela incessante propaganda contra-revolucionária do Império vizinho. As fotos são reveladoras: tão intelectual e emocionalmente subjugado pelas promessas do consumismo febril e antiecológico do Tio Sam maligno, um iludidíssimo servo da gleba caribenha chega a saltar alucinado em direção ao mar, mesmo após já estar absolutamente patente que eles foram, graças ao bom Marx, devidamente abalroados e inequivocamente capturados pelos diligentes tentáculos da pátria-mãe gentil.

Tragicômico à parte, ficam as perguntas: é realmente possível ignorar imagens dessas com cinismo, disfarçá-las com ideologia? É realmente preciso ser liberal - ou conservador ou, genericamente falando, em algum grau anti-esquerdista - para se chocar com a visão do homem cubano atirando-se enlouquecidamente ao mar, pensando sabe-se lá o que, temendo sabe-se lá que castigo? É realmente possível não perceber que essas pessoas não são - e a discussão sobre políticas imigratórias fica para depois - cidadãos sendo presos por país que quer impedi-los, por algum motivo, de entrar em seu território - mas sim indivíduos sendo capturados em alto-mar e levados à força, qual escravos mesmo, para um pedaço de terra que decidiram voluntariamente abandonar, arriscando sobre isopôr ridículo as próprias vidas? Podemos de fato acreditar que o Presidente da República Federativa do Brasil, limitações culturais à parte, não consiga sequer sentir aquilo que a média da humanidade sente, quase que imediatamente, quando contempla cena tão inacreditável, tão reveladora do drama e do horror da vida em um país-prisão?

Realmente: ninguém consegue explicar, ninguém consegue entender.

PS - Dificultando ao máximo a emigração de seus cidadãos, o governo cubano só faz acompanhar a política de países comunistas congêneres, de ontem e de hoje - antes um Muro de Berlim, atualmente uma polícia costeira a catar balseros que fraquejam e traem a revolução. Por trás de tanto zelo, muita realpolitik: a saída voluntária do socialismo em construção rumo à exploração capitalista seria (e de fato foi, mesmo que restrita a um mínimo por muros, cercas, fuzilamentos) um dano enorme para as ditaduras de partido único, constituindo uma legião de dissidentes no mais das vezes enormemente dispostos a falar o quanto sofriam sob o comunismo e usufruir das benesses do sistema econômico condenado pela História. Mas há algo mais ideológico por trás da coisa: como nos mostra o excelente texto A Tortura pela Esperança, do nobre(em mais de um sentido) contista francês Villiers de L'Isle-Adam, o ideólogo - no conto dele, um inquisidor católico; discutimos depois se catolicismo é ideologia - é antes de tudo alguém que está tão absolutamente certo de possuir uma verdade suprema ignorada pelos demais que entre suas atividades se propõe, talvez principalmente, a proteger todo e qualquer ente ainda ignorante da Revelação de seus próprios pecados, de suas próprias falsas escolhas, motivadas por uma visão equívoca do mundo. No conto, o inquisidor impede um infeliz e torturado prisioneiro de fugir da condenação divina que aguardava seu corpo, lamentando mesmo e amorosamente (sim, amorosamente) que o homem não tenha entendido e aceito, no fim da vida, o pecado que cometia ao não abdicar do judaísmo e a punição que mereceria por tão vil atitude. Na ilha-prisão de Cuba, não há porque duvidar que muita gente (esfriamento ideológico e doble moral de lado) realmente lamentou pelos homens terem se atirado ao mar e, amorosamente, se vê disposta a protegê-los de si mesmos e das mentiras em que acreditam.